SEMILOAD – Daft Punk inventou tudo. Sem ter inventado nada

SEMILOAD – Daft Punk inventou tudo. Sem ter inventado nada Foto: divulgação

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* Nosso “the looong read” desta semana, patrocinada pela ótima newsletter Semibreve, de Dora Guerra, fala do fim de Daft Punk, não tem como escapar. Dora comenta sobre o inventivo legado que o duo francês deixou na música, sem exatamente ter inventado nada. Fecha a tampa da “morte” da dupla que sempre agradou eletrônicos, roqueiros e poppers praticamente na mesma proporção, ao trazer um olhar de quem nasceu quando o duo já tinha um álbum lançado e foi crescendo enquanto o Daft Punk evoluia. É engraçado e ao mesmo tempo representativo dos gostos musicais dividir o impacto do fim de uma instituição sonora como o Daft Punk com alguém que tinha dois meses de vida quando eu vi pela primeira vez a banda ao vivo. Porque isso dá a dimensão do impacto das músicas e dos conceitos todos que o Daft Punk despejou na música para diversas turmas de diversas gerações. O que explica por que o anúncio do final de carreira da dupla, feito na última segunda, doeu tanto.

Fala aí, Dorinha.

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Será que o Daft Punk inventou alguma coisa?

Não que seja fácil inventar alguma coisa depois de 21 séculos de sociedade. Fica meio complicado: a roda já foi inventada, o conceito de “original” é uma ideia um pouco maluca. Mas a duplinha francesa, responsável por uma fração importantíssima – e mainstream – da música eletrônica/pop dos últimos 28 anos, acelerou e impulsionou muita coisa. Isso sim a gente pode dizer.

Por exemplo, o Daft Punk não inventou a música eletrônica, nem a associação desta com temas robóticos-computacionais e a estética futurista. Isso tudo a gente tinha desde o Kraftwerk; e música eletrônica é, naturalmente, algo que nos remete a um filme cyberpunk sobre a dominação dos robôs (afinal, é uma espécie de dominação dos robôs). O que os franceses fizeram, no caso, foi só encapsular isso em dois capacetes misteriosos – inspirando Deadmau5 e afins no meio do caminho.

E não necessariamente viam isso com maus olhos: na verdade, era quase irônica a ligação deles com robôs, visto que a música do duo era bastante humana, frequentemente bem-humorada. Eles faziam o eletrônico da forma mais “analógica” possível – menos laptops, mais sintetizadores antigões – e, por baixo dos capacetes, é quase como se estivessem sorrindo o tempo todo.

Outra marca bastante registrada (para mim) foi a voz efeituda. Essa também está longe de ser uma invenção do Daft Punk: o vocoder também estava desde o Kraftwerk, Afrika Bambaataa e afins. Já o talkbox, seu primo, é geralmente atribuído como marca registrada de Roger Troutman e o grupo Zapp, láaaa nos anos 70 – e tem um pouquinho de talkbox em muita coisa, hoje: tem em Bruno Mars, tem em Dua Lipa, tem em mó galera.

Mas se, nos anos 2000, você ligasse a rádio (ou a tv, ou seu dispositivo auditivo de preferência) e ouvisse essa voz robótica, sabia à distância que aquele era o Daft Punk. Estamos falando de um momento em que os DJs/produtores ainda não eram as superestrelas que vieram se tornando nos anos seguintes: a década de 2010 acelerou esse crescimento estelar, o caminho dos Calvin Harris aos Aloks. Mas, já nessa época, o Daft Punk reinventava a música eletrônica estabelecendo suas marcas registradas, shows históricos (feito o icônico Coachella de 2006) e um mistério anticultura de celebridade que os blindou do desnecessário.

Anticultura de celebridade, mas extremamente cultura de celebridade: nada atiça mais a gente que um mistério, e o Daft Punk soube disso com carinho durante toda a sua trajetória. Quanto maiores eles se tornavam, mais preparavam o suspense sobre o que faziam, sabendo que poucos de nós os reconheceriam sem capacetes – mas que, uma vez vestidos, eles tinham toda a nossa atenção. Foi assim até o tal epílogo de segunda-feira, o anúncio de separação: sumidos há anos, os dois nos deixaram especulando sobre um próximo álbum quando, na verdade, preparavam um adeus.

“Quando você sabe como um truque de mágica é feito, é tão deprimente. Nós nos concentramos na ilusão porque revelar como se faz instantaneamente desliga a sensação de excitação e inocência.” – Thomas Bangalter (o Daft. ou o Punk?) na ótima cover story do site “Pitchfork”.

Mesmo recusando o status de figuras públicas convencionais, a carreira do Daft Punk foi muito estabelecida em parcerias com grandes figuras públicas – de forma quase equiparável a um Gorillaz, o duo foi o que foi estendendo as mãos; fazendo feats. com hibridismo suficiente para funcionar com cada colaborador, mas não em demasiado para perder o fator Daft Punk no meio do caminho. Eram os outros artistas que experimentavam um gostinho Daft Punk, não o contrário.

Foi esse combo que proporcionou um momento Michael Jackson merecidíssimo ao The Weeknd, com números feito “I Feel It Coming”; conversou com Julian Casablancas, provavelmente partindo de ídolos do rock em comum e criando a mistura perfeita entre ambos. E claro, de forma inesquecível, Daft Punk colaborou com Kanye West produzindo coisas sensacionais (para além de “Stronger”!) como Blkkk Skkkn Head.

A dupla era uma jukebox de suas próprias influências, honrando ídolos sem considerá-los datados – às vezes, convidando-os para fazer o que sabem ao vivo, em vez de sempre sampleá-los simplesmente. O resultado é claro: dar play em um álbum do Daft Punk é entrar em diversas eras, ter uma experiência sensorial muito além de auditiva e ir para o passado e o futuro ao mesmo tempo. “Something about Us”, de 2001, é tão anos 70 quanto seria anos 2020; justamente por esse deslocamento no tempo, por nunca estar na moda demais, mas sempre à frente, é que o Daft Punk fez seu nome.

Afinal, foram eles que trouxeram o inconfundível disco de Nile Rodgers às paradas em 2013, mesclando-o com Pharrell em um mix que nasceu para ser sucesso – e que adiantaria, como ninguém, o que viria na música pop nos anos seguintes. Eles, sim, eram a futura nostalgia.

E na verdade, o “Random Access Memories” foi tão grandioso pra 2013 – uma sacada tão bem resolvida, vencedora até de álbum do ano –, que oito anos depois descobrimos que era o álbum final da dupla, a última impressão que os franceses querem deixar. Assim, de forma extremamente coerente, o último golpe do Daft Punk foi nos pegar de surpresa de novo – sendo convictos na sua própria identidade até o fim, incorrigíveis. Foi um movimento planejado como tudo em suas carreiras, com uma comunicação completamente controlada por eles.

É… Do início ao fim, foram eles que deram as cartas.

Feito dois robôs que calcularam a curva de sua trajetória e optariam, matematicamente, por parar no auge. Daft Punk não deixou espaço para que o seu trabalho começasse a se saturar, forçando uma relevância passada ou tentando correr atrás de tendências. Fica um trabalho (quase) impecável, um legado já extenso no mainstream, uma legião de fãs que atendem pelo nome de Skrillex, David Guetta e zilhões de anônimos como nós. Mudando a música. Com o privilégio de manter as vidas pessoais praticamente intactas.

Talvez essa seja a invenção do Daft Punk.

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Postado por Lucio Ribeiro   dia 26/02/2021
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