* Nossa pensadora musical contemporânea Dora Guerra, que comanda a newsletter parceira Semibreve, agora implic… questiona os vídeos esteticamente frios do quentíssimo pop brasileiro. Será que é proposital ou acidental? Coincidência estética ou o nosso pop quer nos avisar que já estamos vivendo um certo apocalipse (ou pós-apocalipse) cultural?
Dora Guerra dá uma iluminada nessa escuridão.
Notou que os vídeos do pop brasileiro andam meio… cyberpunks?
Tudo bem, existe essa tendência no pop gringo já há algum tempo (o k-pop que o diga!). Mas, na minha concepção, o cyberpunk era um pouco difícil de associar ao pop brasileiro: uma música tradicionalmente mais orgânica, viva, carnavalesca. Por exemplo: “Nem Um Pouquinho”, da Duda Beat, tem lá seu lado sombrio, mas cai num pagodão baiano. Por que complementar esse tipo de sonoridade com um vídeo tão escuro e “poluído”?
De Duda Beat a Iza, passando por Pabllo Vittar, é curioso que artistas cujas marcas registradas eram (essencialmente) o calor estejam atraídas por visuais mais frios. Muitas dessas artistas, inclusive, cantam sobre temas individuais, não coletivos; têm mais política, crítica e filosofia em seus pronunciamentos públicos que em suas músicas propriamente ditas. Será que escolher o cyberpunk não passa uma outra mensagem?
Afinal, a estética escancara diversas questões: projeta um futuro possivelmente poluído e pessimista; uma vida urbana hiperbólica, que te engole por completo; uma dúvida profunda sobre o que quer dizer ser humano em meio a desenvolvimentos tecnológicos tão avançados; e a decadência, decadência, decadência.
Por esses e outros motivos, esse estilo fantástico-tecnológico-decadente até casou bem com o trap – o que dá para sacar aqui pelo trabalho de alguém feito o Matuê, no disco “MÁQUINA DO TEMPO”. Pegando pelo lado literal, basta ver que a voz autotunada – tecnológica, meio robótica – e o beat, mais sombrio, têm uma conversa direta com a estética cyberpunk. Tudo isso, claro, influenciado por um dos maiores do gênero internacionalmente: Travis Scott.
E à medida que o trap vai deixando sua influência mundialmente e reinando nas paradas, era de se esperar que seus elementos visuais também deixassem pistas no universo mais pop. Vale lembrar também que existe algo de sensual em tudo que é sombrio – o caso do cyberpunk não é exceção; e, se cabe sexy, cabe o pop.
E tem mais, tem mais: tem uma indústria audiovisual crescente no brasil (aos trancos e barrancos, mas isso a gente deixa para outra hora), com gente jovem e boa de serviço e investimentos milionários em videos musicais como nunca antes. Tem grande artista com recurso para bancar um mundo fantasioso ou uma distopia e isso com certeza ajuda. Além disso, a relação direta que a estética cyberpunk faz com o mundo dos games é uma proposta atraente pra qualquer um.
Mas, mesmo considerando todo o papo daí de cima – e ainda que pareça apenas uma escolha estética –, não é só isso: a mera opção pelo cyberpunk já carrega muito significado. Ao projetar um futuro, a estética acompanha um sentimento coletivo, baseado em um certo pessimismo, muitas questões sobre a humanidade e a tecnologia. Mesmo que o flerte com o cyberpunk não ocorra em temática musical ou com densidade, escolher essa estética quer dizer acreditar que ela combina com algo do presente; por definição, a ficção científica sempre tem raízes rastreáveis no agora.
Fato é que o cyberpunk combina com o Brasil, sim. Combina com a sensação de apocalipse ou pós-apocalipse que ainda nos assombra; com o universo poluído, decadente e tenebroso que o governo nos proporcionou; com a tecnologia que, na pandemia, foi o único mediador possível das relações humanas (que de humanas pouco tiveram); com a queimada do que temos de mais simbólico e colorido; e com a realidade autoritária dessas distopias.
Mais precisamente: se estivéssemos vivendo um eterno Carnaval, não sei se haveria espaço para cyberpunk.
Uma estética nunca é só uma estética; em um ou outro vídeo talvez, mas, se já passou de três, se torna algo para se observar mais atentamente. Dançando e sensualizando com seus replicantes, Pabllo Vittar não pretende te trazer o mesmo terror realista que o Criolo em “Sistema Obtuso” (que não é cyberpunk necessariamente, apenas punk de se ver). Mas nunca esteve tão próxima do clima obscuro, coabitando em um mesmo universo tenso e pesado.
É que somos mesmo conterrâneos nesta terra distópica. Será que, quando tudo passar, os vídeos se iluminam de novo?
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* Dora Guerra escreve coisas iluminadas no Twitter dela, o @goraduerra.
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