* A gente estava para entrar nessa pendenga do veterano músico canadense Neil Young contra o Spotify num assunto que envolve Joe Rogan, fake news, vacina, não-vacina, aquela coisa delicada, quando Dora Guerra dedicou sua brilhante newsletter Semibreve, nossa parceira semanal e bradou, lá de Minas GeraisL “Deixa comigo”.
Para quem esteve em marte nos últimos dias, o roqueiro ancião resolveu tirar todas as suas músicas da plataforma de streaming para engrossar um levante de médicos americanos contra uma entrevista problemática de um colega em um milionárioidade podcast de Rogan disseminando fake news com uma roupagem de “outra opinião”. E a polêmica se fez.
A história, em tudo o que ela envolve, em qualquer ponta em que se entra nela, é muito séria e parece que está longe de acabar. Para quem pensa que só vai atingir a velha guarda do rock representada por um cara com calibre do Neil Young contra uma plataforma que representa a modernidade no consumo da música, temos uma história ótima que aconteceu com um amigo deste site.
A filha de 10 anos (DEZ) pediu o celular dele porque precisava fazer uma coisa. Entrou no Instagram do pai e foi até a conta da cantora Billie Eilish. Passou a segui-la e mandou uma DM pedindo para ela tirar as músicas dela do Spotify. Depois pediu para o pai abrir o perfil dele, que era fechado, para o caso de a Billie Eilish resolver olhar. E nos dias seguintes perguntava para o pai: “A Billie respondeu?”.
Agora pensa um pouco: 10 anos de idade e foi impactada por questões envolvendo Joe Rogan e Neil Young e vacina e Spotify. E se posicionou.
Mexe com essa geração, mexe.
Mexe com a Dora Guerra, mexe.
Muito vem se falando sobre os assuntos Neil Young, Spotify, streaming, antivaxxers e mais. O papo é complexo, muita gente está confusa. Por isso, me meti em um trabalho jornalístico e investigativo profundo – nível “Jornal Nacional” – para esclarecer o assunto. Cola comigo:
Bom, tudo começou quando o Neil Young botou seu sobrinho blogueiro para trabalhar e postou uma nota, anunciando que ia retirar seu catálogo inteiro do Spotify. O motivo? Há alguns anos, a plataforma comprou e disponibiliza com exclusividade o podcast de um tal de Joe Rogan, “comediante” que agora dissemina informações antivacina (e é líder de audições nos EUA).
Esse pronunciamento do Neilzinho, cujo impacto foi difícil de prever a princípio, foi gerando uma bola de neve para o streaming – a empresa está caindo em ações, respondendo mal, perdendo inclusive um número significativo de usuários (ainda que não o suficiente para causar danos à marca a longo prazo). Ah, a Joni Mitchell vazou também do Spotify. Roqueiro de verdade faz assim.
Aí, temos as perguntas de um milhão de dólares: o que o Spotify vai (ou pode) fazer? Por que outros artistas aparentemente engajados não fazem nada? E principalmente: você deveria cancelar a sua assinatura também?
Primeiro, vale lembrar que nunca nada é tão simples quanto parece. Não é de hoje que os artistas têm uma profunda insatisfação com o Spotify – por ter a menor qualidade de áudio entre todos os streamings e porque, se as plataformas de streaming já não pagam bem, o Spotify é a pior delas. Para você ter uma noção, o “retorno” financeiro vem em cerca de US$ 0.004 por stream.
Tá bom! Enquanto artista, você consegue bancar tipo um picolé com todos os milhões de usuários que te ouvem no Spotify. Mas você vai encarar sair da plataforma mais usada em boa parte do mundo ocidental, em uma realidade movida à visibilidade? Dificilmente. Não estar no Spotify é, em parte, não existir. E para artistas cuja renda de shows e mercadorias reduziu significativamente nos últimos anos (por motivos óbvios) sair do Spotify pode ser um tiro no pé – por pior que seja o tratamento da plataforma.
Claro, se você é o Neil Young – consolidado, tranquilão, preocupado com o mundo –, até rola. Mas quantos são os Neil Youngs na música?
Ainda que fossem muitos, temos a outra questão: os direitos. Os próprios artistas não costumam ter os direitos legais sobre suas músicas. Pô, até a Taylor Swift já não é mais dona do seu próprio catálogo e está nessa luta há um tempo. Afinal, o Spotify sobrevive da forma que sobrevive porque está ali, lado a lado com grandes gravadoras e detentores de catálogos, fazendo chás da tarde aos quais você não foi convidado – e zero interessado em mexer no esquema que banca a escolinha do filho mais novo do CEO.
Mas você tem princípios, eu também tenho. Você tem uma assinatura no Spotify, eu também tenho. Precisamos fazer com o Spotify o que fizemos ao torcer o nariz para o Madero, Riachuelo, Havan? Ou o Spotify não tem tanta problemática assim?
Bom, problemática tem. A nota de resposta de Daniel Ek (CEO do Spotify), lançada na segunda-feira passada, tem uma série delas. Em meio a propostas rasas, ela cai na falácia de equiparar opiniões com fatos, dizendo que o próprio CEO discorda de várias das coisas divulgadas em sua plataforma. E se dedica a acrescentar um rótulo em TODOS os conteúdos relacionados à covid-19, levando a um diretório de informações deles sobre o assunto para quem quiser clicar – mais uma vez, colocando negacionistas e cientistas em uma mesma categoria, sem ações diretas sobre os primeiros (e todo mundo sabe que negacionista nenhum gosta de ler diretório de informação. É isso que os fazem negacionistas!).
Esse argumento de “liberdade de expressão” ou “neutralidade de informação” – uma tecla em que o Facebook bateu e martelou principalmente após as eleições americanas – nada mais é que uma falsa isenção moldada para você acreditar. Existe, sim, uma série de coisas que a plataforma pode fazer (começando pelo simples: derrubando um podcast negacionista do ar ou no MÍNIMO rotulando-o como conteúdo falso), mas, gente, o podcast gera renda. Derrubá-lo significa perder dinheiro. Aliás, podcasts geram muito mais renda ao Spotify que as músicas, diga-se de passagem. E, em se tratando de música, a saída de alguém feito Neil Young não dá o mesmo preju que alguém feito The Weeknd poderia causar, por exemplo.
É triste lembrar o quanto nosso consumo artístico é mediado por empresas. O inferno do inferno do capitalismo ficou ainda mais insustentável nos últimos anos, em que o “bem público” foi para o beleléu em nome do lucro. Mas, antes que você se sinta totalmente impotente, essa situação tem uma questão importante: ao contrário do caso Facebook (como boicotar Facebook, Instagram e WhatsApp nas nossas vidas?), o Spotify é de fato uma briga que a gente pode comprar.
Porque qualquer menor barulho pode, de fato, causar um rebuliço; talvez não nessa luta labiríntica contra fake news, mas em uma luta possível contra a remuneração injusta de músicos que admiramos e consumimos. É possível lembrar ao Spotify que eles devem mais aos nossos artistas – e que nós, usuários, temos outras opções.
“Músicos de todo o mundo estão desempregados agora, enquanto os gigantes da tecnologia que dominam a indústria faturam bilhões. Trabalho musical é trabalho, e estamos pedindo para ser pagos de forma justa por esse trabalho.” – Mary Regalado para a Pitchfork
Vou te cancelar por manter a assinatura? Também não. Estamos todos encarando o dilema – ao mesmo tempo, sem saber muito bem o que fazer. A gente tem apego às nossas playlists, aos Wrappeds, a ver o que nosso amigo está ouvindo naquela segunda à tarde. Acontece.
Mas sei lá, se der, aproveita a onda. Cancela. Surfa no Tidal, que tem ficha técnica apuradíssima para cada música. Experimenta o áudio espacial da Apple Music. Explora o catálogo do Deezer. Fuça o Youtube Music, amor. Deixa os hegemônicos se ferrarem um pouquinho. E, depois que o pau quebrar… cê pensa se volta.
Ou larga tudo e vive de comprar vinil, meu bem. O vinil nunca machucou ninguém.
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* Dora Guera não usa o @goraduerra, no Twitter, para fake news.
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