Chegou o dia! Lendária banda Bikini Kill toca em São Paulo hoje. Convidamos Luiza Sá, do CSS, para entrevistar a Kathleen Hanna

Show histórico que acontece nesta semana em São Paulo, a importante banda punk feminista americana Bikini Kill, da cantora e ativista Kathleen Hanna, se apresenta na Audio na terça-feira, dia 5.

Um segundo show, outro armado no mesmo local pela brava Associação Cecília junto com a pequena DaTerra Produções, produção altamente independente e na raça, está marcado para o dia 14, a quinta-feira da semana que vem. Os ingressos para o primeiro concerto se esgotaram em poucas horas. Para a segunda data, até o momento em que este post foi escrito, restavam poucas entradas.

Com tudo o que foi falado aqui desde que o Bikini Kills no Brasil foi confirmado, o que envolve esta vinda ao pais, de tal banda e com tal produção local, é especial por onde quer que se olhe.

E tal momento precisa de tratamento especial nosso também. Por isso convidamos uma das guitarristas da banda brasileira Cansei de Ser Sexy, a Luiza Sá, para entrevistar a grande Kathleen Hanna, do Bikini Kill.

Luiza e todas as outras integrantes do grupo brasileiro é fã de Bikini Kill e da Kathleen Hanna em especial. E, pelo que podemos ver na conversa das duas abaixo, Hanna também é fã de CSS.

Confira a entrevista, abaixo:



Luiza Sá – Primeiramente, queria te agradecer por fazer esta entrevista. Eu e as meninas do Cansei de Ser Sexy somos muito fãs de você. A Ana [Rezende, tecladista e guitarrista] tem uma tatuagem da vitrola que tem na capa do disco “The Singles” [coletânea do Bikini Kill, de 1998], só pra você entender o tanto que a gente te admira e o quanto você é referência pra nós.

Kathleen Hanna – Você é do CSS? Eu amo sua banda! Vocês fizeram tour com a JD (1), né? Vocês são incríveis. Estou me lembrando das roupas de vocês. Tantos ensaios fotográficos ótimos. A gente também foi inspirada por vocês, muito legal te conhecer! 

Luiza – Sério? Não sei nem como comentar isso, estou começando a suar. Então é melhor fazer a primeira pergunta logo. Como tem sido estar de volta com a banda e fazer shows juntas? O CSS também praticamente não tocou por oito anos e acabamos de fazer uma apresentação e anunciar uma tour. 

Hanna – Adoraria saber como está sendo para você. Para mim tem sido surpreendentemente bom. Talvez até me dando medo de tão bom, como se alguma coisa ruim fosse acontecer. Claro que existem obstáculos e é muito difícil fazer turnê hoje em dia com o coronavírus. Assim que pararam de jogar correntes na gente, covid teve que aparecer. Correndo o risco de soar muito piegas, tem sido uma cura.

Nos anos 90, trinta anos atrás, a gente subia no palco e tinha homens gritando coisas horríveis na nossa cara. Toda vez que eu falava entre as músicas, me diziam para calar a boca ou para tirar a roupa e isso não acontece mais. Ainda passam a mão em mulheres nos nossos shows, o que é bem inacreditável. E hoje estamos num período tão maluco de muita gente de extrema direita, ódio de mulheres, ódio de pessoas não brancas, ódio de pessoas trans etc.

Então não é tão inesperado que essa faces antiquadas de ódio e opressão apareçam em todos os lugares, até num show do Bikini Kill. Nosso show não é uma zona segura. Não existe um lugar seguro, mas no geral é muito bom. Estamos saindo em turnê agora e temos nossa própria equipe de som. Estamos meio protegidas dessas violências. É definitivamente um processo de cura ir para o palco e ter pessoas superfelizes apreciando que você está lá em vez de ter que pedir para mulheres na platéia te protegerem dos homens que estão lá te xingando de vagabunda.

A gente merece isso, voltamos para pegar nosso troféu! [Risos.] Toda vez que estou no palco cantando eu me sinto muito feliz. Não quero dizer que é um lado positivo dessa pandemia, porque é muito difícil usar a palavra “positivo” para descrever algo que matou milhões de pessoas, mas, obviamente, nós estávamos muito isolados e agora poder estar junto, na vida real, depois de sermos tão consumidos pela internet, é muito renovador, como um copo de água no deserto pra muita gente. Essa sensação tira o peso das extraprecauções e constante preocupações que temos que ter sobre ficar doente durante a turnê.

Luiza – Muitas das causas pelas quais você lutou para avançar nos anos 90 agora parecem mais relevantes do que nunca. Isso é uma coisa que te frustra ou que te encoraja? Como é para você estar neste momento político?

Hanna – É horrível. É absolutamente devastador. Mesmo hoje, por exemplo, nosso governo (EUA) está financiando um genocídio na Palestina. Tenho sorte o suficiente de conseguir levantar da cama e fazer algo como entrevistas, onde eu falo de música, então estou tentando me sentir grata por tudo que eu, pessoalmente, tenho. E aí usar o que eu tenho para tentar fazer algo que seja positivo e complexo.

É muito dolorido olhar para o quadro de hoje. Tudo parecia tão urgente lá trás, como o aborto, por exemplo, sempre em ameaça. Tocamos os eventos Rock for Choice (2), tentando manter o aborto legal, sempre tentando tocar em campanhas para ajudar o Planet Parenthood (3). Hoje a maioria desses centros estão fechados e aborto é ilegal na grande parte dos estados americanos, até pra pessoas que tiveram aborto natural. E mulheres estão morrendo. Eu nunca achei que iria estar tão ruim como agora.

E, claro, não é ruim só para quem precisa de aborto. É ruim também para pessoas que não são brancas, que têm que viver com medo de andar na rua e perder a vida. É um todo ficando cada vez pior e pior.

A única coisa que é melhor é que estamos falando sobre tudo isso e olhando para tudo isso. Eu lembro estar tão chateada em relação aos homens gritando coisas péssimas nos nossos shows, mas depois de um tempo eu tive que começar a apreciá-los, de uma forma. Quando começamos a fazer shows em Olympia, Washington, as pessoas falavam para a gente: “Isso é tão besta. Feminismo não precisa mais existir, sexismo não existe mais”. Isso em 1989, 1990!

Então, de certa forma, homens mostrando suas atitudes misóginas enquanto a gente tocava só acabava mostrando o quão importante o que a gente estava fazendo era. E alguns homens de classe média alta que foram para a faculdade, eles sabiam que não era para falar ou agir daquela forma. Mas não significa que eles não sentissem ou pensassem da mesma forma que os misóginos.

Então obrigada aos caras que estavam dispostos a se expor assim para a gente, porque aí a gente podia apontar para eles e dizer: “Estão vendo isso? Sexismo ainda existe, está vivo aqui neste espaço e estamos confrontando isso agora. E, se você achou que isso era um exercício inútil, agora você pode ver que não é”.

Acho que algo parecido acontece com a cultura geral, agora. Por exemplo, como uma pessoa branca, se eu quiser sair por aí fingindo que racismo não existe, é impossível. Você realmente tem que tentar tapar o sol com a peneira para pensar que não existe um problema sério, horrível e violento de racismo no nosso país [EUA], então eu não quero dizer que é positivo. Mas ao menos estouramos essa espinha e agora podemos olhar e tentar fazer planos de como lidar com tudo. Isso cria algum sentido e é algo em a que eu tento me apegar. 

Luiza – Qual a importância do humor no seu trabalho? Pessoalmente, eu acho você bem engraçada e sagaz. 

Hanna – Eu acho que o humor é muito importante. Acabei de escrever um livro com algumas histórias horríveis de violência e trauma e elas sempre acabam com uma piada. Então eu comecei a perceber que essa é a minha forma de processar e sobreviver às coisas difíceis.

Tanta gente no mundo que passou por tantos traumas gigantes, seja guerra ou imigração forçada ou estupro… Ou qualquer tipo de violência, como ter sua cultura roubada ou não ter sido aceito nos lugares que você sente que nasceu para estar. Como, por exemplo, se você sente que nasceu para pintar ou para cantar e te dizem que você não pode fazer essas coisas. Isso é muito dolorido. Acho que o único jeito que encontrei para lidar com minhas frustrações foi rir e fazer piadas.

Muitas vezes, as pessoas que cometem violência sentem prazer em ver o outro sofrendo ou com medo. Elas querem que você tenha medo e eu não vou dar isso a elas. Eu prefiro rir na cara dos meus opressores para mostrar quão ridículos e estúpidos eles são. E fazer alguma piada esquisita em vez de gastar minha energia respondendo com algum tipo de lógica ou razão.

Acho que isso isso me colocou em várias roubadas nos 90, quando eu tentava usar razão e lógica para discutir com essas narrativas irracionais e cheias de estereótipos. Em algum momento eu tive que lidar com isso sendo ainda mais ridícula.

Quanto mais envelhecemos, mais nos cercamos de pessoas que não são imbecis, então quando eu estou perto de pessoas ignorantes às vezes nem entendo o que elas estão falando. É tão nada a ver que é até engraçado.

Luiza – Alguma expectativa para os shows no Brasil?

Hanna – Eu nunca toquei ou fui para a América do Sul, e levou todo esse tempo, então estamos muito empolgadas. Eu queria ler livros sobre música e feminismo do Brasil, então se você tiver dicas manda para mim. 

Luiza – Com certeza! Eu sei que você passou por várias dificuldades com a doença de Lyme {infecção provocada por um tipo de bactéria transmitida por carrapatos, que provoca lesões na pele, no sistema nervoso central e periférico e no coração]. O que você aprendeu e como conseguiu voltar a fazer música?

Hanna – Eu tomei um monte de remédio [Risos]! Cheguei a tomar um monte de antibióticos direto no meu coração por nove meses. Foi muito intenso. Eu não quero parecer Poliana, mas eu sou muito grata por estar viva e eu sinto que ganhei uma segunda chance. E não quero desperdiçá-la.

Um dos efeitos colaterais mais bizarros de ter uma doença assim é conseguir atravessar para o outro lado, e acho que é algo similar a sobreviver a um trauma violento, como estupro. É que você passa por essa coisa horrível e aí você chega do outro lado e existe essa pressão de estar sempre grata. “Uau, consegui subir as escadas do metrô!” ou “Nossa, li um artigo inteiro sem ter que dormir!”. Todas essas realizações para mim que antes da doença eram banais. Eu senti que tinha que fazer uma festa para comemorar. E eu senti que todo dia é um novo dia. Me sinto grata quando eu estou no palco. Ou antes de ir ao palco eu penso que podia estar de cama doente.

No final do Bikini Kill eu não tinha a menor vontade de estar no palco e agora eu pareço uma bala de canhão, pronta para explodir, eu mal posso esperar. Então é realmente uma virada incrível. Mas eu preciso estar atenta para não ficar com uma positividade tóxica também.

Tem dias que eu me sinto uma merda, só quero ficar na cama e comer pizza e tudo bem também. Eu não preciso ficar me pressionando tipo “Você teve doença de Lyme, você tem tanta sorte de ter uma segunda chance, tem que aproveitar todos os segundos de todos os dias”. Às vezes eu só quero assistir TV ruim e desencanar e tudo bem. 

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(1) A banda da JD Samsom, MEN, abriu uma turnê americana de um mês para o Cansei de Ser Sexy em 2011.

(2)  Rock for Choice foi uma série de shows beneficentes em apoio de abortos legais nos Estados Unidos e Canadá entre 1991 e 2001, organizada pela banda L7 e a editora de música do guia “LA Weekly”, Sue Cummings. E tiveram apoio de muitas bandas ilustres, como Nirvana, Mudhoney, Red Hot Chili Peppers, Foo Fighters, Rage Against the Machine, Pearl Jam, X, entre outras. 

(3) Planned Parenthood (Paternidade Planejada) é uma ONG americana fundada em 1907 que provém serviços de saúde ligadas à reprodução e saúde e educação sexual gratuitos em suas clínicas. 

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* O show de terça do Bikini Kill na Audio tem abertura das bandas The Biggs, Bertha Lutz e Florcadaver. No de 14 de março as atrações serão As Mercenárias (part. Paula Rebellato), Punho de Mahrin e Weedra.

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* Os ingressos do dia 14 estão disponíveis aqui, na bilheteria da Audio e na Associação Cultural Cecília. O preço é R$ 265.
** Parte da arrecadação dos ingressos será destinada à instituição Girls Rock Camp Brasil @girlsrockcampbrasil , que empodera meninas, mulheres e dissidências por meio da música. E os alimentos entregues na compra da meia entrada social — disponível para todos — serão doados para as aldeias Tekoa Pindo Mirim & Tekoa Itakupé, da Terra indígena Jaraguá em São Paulo.

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