O novo álbum da Florence + The Machine, a sua quase-morte e o nosso veredicto

Quando a estranheza já é familiar, só um episódio de quase morte é capaz de expandir o cosmos criativo em “Everybody Scream”, novo álbum da banda inglesa Florence + The Machine, lançado na última sexta-feira, 31 de outubro.

Sem dúvida, o sexto e mais recente disco de Florence chegou para libertar as bruxas e monstros da artista com seu lançamento no Halloween.

O aceno ao caos e às forças autodestrutivas é recorrente na sua obra e ficou ainda mais evidente com os covers recentes de “Abracadabra”, hit de “Mayhem”, disco também lançado este ano por Lady Gaga. Mas expurgar horrores ocultos não é novidade na música da britânica. Inovação, inclusive, é justamente o que falta em “Everybody Scream”.

Embora o novo trabalho convide a dançar com as bruxas, literalmente, no caso da faixa “Witch Dance”, com o groove polido do produtor Aaron Dessner, parceiro de Taylor Swift em Folklore (2020) e Evermore (2020), a energia que impulsiona essa nova fase não nasce das sombras, mas de forças animalescas.

Em 2023, Florence Welch sofreu uma gravidez ectópica seguida de aborto espontâneo e ruptura das trompas, o que causou uma hemorragia interna quase fatal. Na época, estava em turnê e chegou a se apresentar até um dia antes da cirurgia de emergência que provavelmente salvou sua vida.

Em entrevista ao “Guardian”, a cantora contou que ao retornar do hospital uivou de alívio, soltou do peito um som tão alto e profundo que, segundo ela, mais parecia o grito de um animal ferido. Apenas dez dias após o procedimento, voltou aos palcos, movida por uma força que descreve como seu lado animal.

A cantora reflete que “o mais próximo que chegou de gerar uma vida foi também o mais perto que chegou da morte”. O quão transformadora pode ser uma experiência dessas?

Segundo ela, nada mudou muito, apenas tomou maior consciência da própria força. E, de fato, a música do novo disco mostra que não houve grandes mudanças. Faz sentido: as escolhas de Florence falam menos sobre reinvenção e mais sobre sobrevivência.

O poder feminino e grandioso se manifesta em “Kraken”, faixa pop em que o pré-refrão segue a fórmula do maior hit da artista, “Dog Days Are Over”. Essa estrutura, presente desde Lungs (2009), alterna arranjos floridos com cordas e metais soturnos, aliviando a tensão dos versos, que são bem visuais: “My tentacles so tender as I caress your cheek/ Did you know how big I would become?/ And how much I would eat?”, algo como, em português, “Meus tentáculos tão delicados enquanto acaricio sua bochecha/ Você sabia o quão grande eu me tornaria?/ E quanto eu comeria?”.

Esse poder vem acompanhado de magias de cura que Florence diz ter adquirido nesta nova fase, como se ouve na monumental “The Old Religion”: “Freedom from the body, freedom from the pain/ And it’s your troubled hero/ Back for season six” (Liberdade do corpo, liberdade da dor/ E esse é o seu herói problemático/ De volta para a sexta temporada).

Há, portanto, um comprometimento em revelar o divino feminino em toda a sua força, a mesma que sustenta a trajetória de Florence dentro de um pop progressivo capaz de transitar entre o indie sombrio e o mainstream. É um mérito comparável ao de Kate Bush, mas menos evidente em artistas como St. Vincent ou Mitski, que permanecem mais restritas a nichos, ainda que compartilhem da mesma aura cósmica de Welch e sua máquina.

Florence mantém o cabelo vermelho e suas maiores virtudes intactas: a voz de sirene angelical e a música orquestral que oscila entre o etéreo e o sombrio. No entanto, justamente por preservar essa essência, as imagens poderosas de “Everybody Scream” nem sempre reverberam na sonoridade. A liberdade conquistada “do corpo e da dor” não se apresenta como ousadia criativa, mas se percebe na autonomia de se declarar livre das expectativas do público, dos gêneros e da indústria.

A apreciação do novo álbum depende, em certa medida, do conhecimento prévio da jornada de Florence. “Everybody Scream” funciona, portanto, quase como um culto para os já convertidos a sua “old religion”. Ainda que isso não pese a favor do disco, a experiência ganha força quando se lembra de “King”, single do álbum anterior “Dance Fever” (2022):

“We argue in the kitchen about whether to have children/ The very thing you’re best at is the thing that hurts the most/ You need to go to war to find material to sing/ I am no mother…”
(Discutimos na cozinha sobre ter filhos/ Aquilo em que você é melhor também é o que mais fere/ Você precisa ir à guerra para encontrar material para cantar/ Eu não sou mãe…)

O episódio da gravidez e o encontro com sua grande força só viriam no ano seguinte e, em retrospecto, há uma liberdade poética para considerar que Florence previu a sua quase-morte.

Apesar de não se afastar dos elementos com os quais os fãs já têm intimidade, nem tudo é previsível em “Everybody Scream”. O álbum, que se inicia com um cortejo na faixa-título, apresenta uma boa guinada ao rock alternativo na sequência de trabalhos de Florence, algo que não se via desde os momentos mais pesados de “How Big, How Blue, How Beautiful” (2015). O fuzz das guitarras nas duas primeiras faixas imprime essa certa rebeldia em não atender às expectativas. 

Dessa experiência libertadora, Florence parece também ter conquistado a liberdade artística de não se prender às tendências. “Everybody Scream” não tem hits prontos para viralizar, mas estão lá seus vocais cósmicos, ora floridos, ora melancólicos, a harpa inconfundível e a sua dramaticidade tão singular. Sem ideais de criatividade que aprisionam, livre de expectativas que não sejam as suas, Florence Welch segue com uma força mais surpreendente que a própria música.

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Postado por Lúcio Ribeiro   dia 06/11/2025
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